Ana não acredita que o marido, Francisco Canindé, se foi. Não acredita porque não o viu morto. Essa imagem parece importante para selar a finitude da vida. Tem a sensação que ele vai voltar. A tristeza não é passageira. Chora 24 horas, acorda com a saudade. Fica na frente da casa tentando achar Canindé no rosto dos passantes, ou um carro parar em frente a sua porta trazendo-o de volta do hospital curado da Covid-19 e abraçá-la. "Eu não sei explicar...ele era meu tudo. 35 anos de casamento é uma vida. Ele era meu tudo", contou baixo, com a voz embargada.
Após sua morte, Ana ficou traumatizada. Passou cinco dias sem se alimentar direito. Usa máscara até dentro de casa. Não entende quem ainda minimiza o vírus. Antes de se internar, Canindé teve muita febre, calafrios e tosse. Ana ainda consegue ouvir seus gemidos intermináveis. Ele passou 17 dias doente; 10 em casa 7 no hospital. Não quis se afastar do trabalho mesmo sendo grupo de risco, com medo de não receber o salário.
"Canindé, não me deixe sozinha", pediu Ana quando ele foi se internar no Hospital Santa Catarina. Ele foi levado para o Hospital às 4h pelo genro. Este pediu para a equipe fornecer uma maca para o sogro mas o Hospital negou. Canindé era maqueiro, ironicamente.
Quando ele foi para o Santa Catarina, sua filha, Kelly, pediu para o pai ficar bom logo para poder brincar com a netinha, Alícia, que vai fazer 3 anos. Kelly ficou sem chão com a morte de Canindé. Quando chegou perto do necrotério, viu o pai dentro de um saco preto com a alma sufocada. A vida não tinha mais lugar; a terra o engoliu o que restava.
No Hospital da Polícia, onde faleceu, a família não teve nenhuma notícia durante seu período de internação. A única foi a da morte. Kelly acordou Na manhã do dia 13 de maio com mais de vinte ligações no celular. Logo desconfiou. Foi convocada para ir ao Hospital. "Deve ser coisa ruim", pensou. Ele havia sofrido uma parada cardíaca e a equipe médica não conseguiu reanimá-lo.
Estava de férias antes de se contaminar. Quando retornou, sentiu enorme cansaço nas pernas. O médio Dr. Solon - que faleceu dias antes de Canindé, também de Covid-19 - aconselhou-o a se afastar."Zangado, é melhor você ficar em casa", disse. Solon faleceu no dia 6 de maio.
O coração de Jane, irmã de Canindé, doía quando ouvia a palavra "Sesap". Assistia sempre às coletivas de imprensa com a Secretaria de Saúde dizendo que havia vagas de UTI no estado. Mas seu irmão não conseguia leito. Jane acredita que a demora por uma vaga foi o que causou a morte do irmão. Ela culpa a negligência dos governos que só pensam em dinheiro. "Eles brincam de casinha com as pessoas; brincam com a vida do povo. Eles têm família!", exclamou. "Precisava vir uma pandemia para equiparem os hospitais? Eles estão brincando com a gente, meu Deus!"
Jane trabalhou com Fátima Bezerra, atual governadora do Rio Grande do Norte, no colégio Felipe Guerra, nos anos 90, como ASG. Ela lembra que Fátima sempre foi agitadora, fazia o "enterro" dos governadores. Incitava greves e tinha uma força diabólica para conquistar pessoas. Depois que se tornou gestão, esse passado evaporou. "Se eu a encontrasse frente à frente...eu teria muitas coisas para dizer...", revelou.
A angústia do isolamento foi uma das coisas mais duras para a família, pois não podiam visitá-lo. A última vez que o viu ela havia ido deixar alguns produtos de higiene. Insistiu muito para vê-lo, pelo menos de longe. A técnica de enfermagem abriu uma fresta na posta de vidro e ela o viu de longe. Fez positivo com a mão e ele retribuiu. Ela gritou: "Nós estamos lá fora torcendo por você! Nós te amamos!" Ele fez positivo novamente.
Canindé era muito humano. Ele era capaz de carregar um pessoa no colo se precisasse. Gostava de assistir TV e ouvir músicas antigas. Adorava galinha, feijão e milho. Era morador do Igapó e preocupava-se muito com a família. Não temia a morte. Seu maior medo era não conseguir ver a neta crescer.
Sonhava criar animais e morar no sítio que havia comprado quando se aposentasse. Nascido no município de Bento Fernandes, era o 4º filho de 15 irmãos. Cresceram juntos e viveram momentos felizes na pequena casa do interior.
No trabalho também era muito querido. Era chamado de "Zangado" pelo rosto sempre fechado. Ele era muito tímido, só falava o essencial. A pesar disso, era muito sensível e não brigava com ninguém.
As sucessivas mortes que aconteceram na família ajudaram Canindé a se fechar ainda mais. Perdeu o irmão em outubro do ano passado vítima de um Canindé agressivo câncer, além da morte dos pais. "É duro ficar sem eles...", disse Jane.
Para o enterro foram liberadas vinte pessoas apenas. O vírus roubou a possibilidade da despedida. "Foi tudo muito rápido. Primeiro veio aquele carro terrível...depois o buraco", contou Jane. A cova era um abismo onde tudo se perdia no escuro da morte.
Em março, ele completou 60 anos. A família fez um bolo para comemorar a vida. Não imaginavam que a morte estivesse tão próxima. Sua tranquilidade repousa na mente de todos.
Ralatos compartilhados pela irmã de Canindé, Jane, esposa, Ana e filha, Kelly.
Escrito e apurado por Tiago Silva